segunda-feira, 20 de abril de 2009

Entre!


Há dias que minha dança tem sido escrever. Escrever é planejar a dança que será executada no corpo? Depende... Depende do quê? Depende do quê. Do como.
E mais uma vez já havia começado a escrever antes de sentar-me, abrir o caderno e começar a rabiscar. Isto talvez denuncie alguma urgência. O que para mim é um alívio. Talvez plágio daquela constatação:

O pulso ainda pulsa

Hoje pensei num início. O palco é grande e vazio. (parêntesis: não raro, quando assisto espetáculos, ou até mesmo filmes, brinco de olhar de outras formas: desfocado, vesga, pisco rapidamente as pálpebras... fecha parêntesis). Sim, lentamente aparece uma suave projeção de vídeo, de luz muito crepuscular. Revela eu de costas, bem no fundo do palco. Revela, como um desejo que esteja sendo feito na hora, com o efeito do piscar-borboleta, o símbolo 

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 eu estou aqui no meio. No meio-excludente, que no entanto me inclui entre. Entre duas chaves que apontam para o entre(meio) e, todavia, incluem todo o infinito às suas frentes.
Aproveito a oportunidade de estar no entre-não para entregar o peso da minha cabeça à parede à minha frente. Escorrego. Deixo pedaços dos meus olhos, bochechas, queixo, lábios, ombros, peitos, barriga, púbis... não posso mais prever. Escorrego para o meu terreno-entre-chão. O meu terreno de mutação. Lenta, monónota, homogênea e, oxalá, tranquilamente, mudo, vou mudando. E já não sei mais o quê. Não sei bem se o que disse agora é verdade. Se é assim. Mas pode ser. Mas pode ser que eu dançando tudo mude porque não era assim. Ou fosse desse jeito e mais de qualquer outros jeitos que eu não pudesse (e não posso mesmo agora) ante-ver.

Entrever Entregar
  Entreolhar
Entrecortar
                            
   Entremeio
   
   Entrevistar
Entrevistar é dizer e perguntar Entretanto

Um abatanado no Café Leiteira


A música chora lindamente ao baixo volume do rádio. Se arrasta. A luz também se arrasta de amarelo-quase e vai lambendo as superf'ícies todas. Há um respirar em amarelo-quase. E isso se faz num arranjamento especial que logo acolhe.
Está sempre subindo na coluna uma aranha de gesso muito encaracolada bem. Ela se contorce como bixo-preguiça a trepar e trepar sem ter fim. Não tem pressa nenhuma enquanto faz o mesmo movimento-intenção. Da última vez que vim aqui estava na mesma situação. Ela sabe que isto não se esgota, que as coisas podem continuar sendo sem nunca acabar de ser.
A moça da minha direita tem o olhar em um lugar bem distante. Infectada por este tempo de dentro, tem movimentos bem lentos e relaxados. Pisca vagarosamente os olhos, cruza as mãos à altura da boca e pende muito levemente a cabeça.
Uma vez, há muito tempo atrás, veio numa carga de navio que voltava da Índia casais de azulejos desenhados. À esta altura só haviam blocos de pedra em Portugal. Os casais ficaram muito satisfeitos com essa imensidão de blocos para trepar, que de tanto fazê-lo, muito rapidamente toda Lisboa tinha filhotes, netinhos e bisnetinhos de azulejos trepados por toda a cidade. Os azulejos que ficaram na Índia ouviram a notícia sobre a grande farra que acontecia em terras lusas. Então houve uma grande promoção turística a Portugal e foi enorme a evasão de azulejos da Índia. É por isso que hoje se encontram várias construções apoiadas sobre azulejos trepados em Lisboa. E já quase não se encontram mais destas espécies em Índia. A imigração é algo incontrolável.